domingo, 2 de maio de 2010

O Conselho Tutelar e o caráter coercitivo de suas deliberações.

Instituição democrática, criada pela Lei n° 8.069/9 0 com o objetivo zelar pelo efetivo e integral cumprimento dos direitos da criança e do adolescente, o Conselho Tutelar tem encontrado dificuldades no exercício de suas atribuições em decorrência da falta de compreensão sobre seu papel dentro do “Sistema de Garantias dos Direitos da Criança e do Adolescente” e
sobre a natureza jurídica de suas deliberações.
A falta de conhecimento da lei e, acima de tudo, dos princípios que a inspiram e norteiam, faz com que muitos não consigam enxergar o óbvio, dando margem para ocorrência de situações absurdas, em que o Conselho Tutelar precisa recorrer à Justiça da Infância e da Juventude para ver cumpridas suas determinações, quando na forma da lei, deveria ocorrer exatamente o
contrário: os destinatários das determinações do Conselho Tutelar é que, para se verem desobrigados de seu cumprimento, teriam de pedir sua revisão judicial, sob pena de responderem administrativa e mesmo criminalmente por sua omissão.
A análise da matéria deve partir da constatação elementar de que o Conselho Tutelar foi concebido e criado com o objetivo precípuo de “desjudicializar” e, por via de consequência, tornar mais rápido e menos burocrático o atendimento das crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade e suas respectivas famílias, com seu posterior encaminhamento
aos programas e serviços destinados a solucionar os problemas existentes.
Necessário também levar em conta que o Conselho Tutelar possui o “status” de autoridade pública (a própria Lei nº 8.069/90 assim o considera, ao referir-se, em diversas de suas passagens, à figura da “autoridade competente”2, que tanto pode ser o Conselho Tutelar como o órgão do Poder Judiciário3), equiparado em importância à figura da autoridade judiciária que, em última análise substitui (inteligência do art. 262, da Lei nº 8.069/90). Vale
mencionar, a propósito, que constitui o mesmo crime “impedir ou embaraçar” a
ação de autoridade judiciária ou membro do Conselho Tutelar (cf. art. 236, da
Lei nº 8.069/90), e a mesma infração administrativa “descumprir, dolosa ou culposamente,... determinação da autoridade judiciária ou Conselho Tutelar” (cf. art. 249, do mesmo Diploma Legal), deixando assim claro que, na forma da lei, o Juiz da Infância e da Juventude e o Conselho Tutelar encontram-se no mesmo patamar, não havendo hierarquia entre ambas autoridades, que apenas têm atribuições/competências distintas.
1 Promotor de Justiça e membro da Associação Brasileira de Magistrados e Promotores de
Justiça da Infância e da Juventude - ABMP, no estado do Paraná (murilojd@mp.pr.gov.br).
2 Como é o caso dos arts. 93, 101 e 147, §2º, da Lei nº 8.069/90.
3 Quando a Lei nº 8.069/90 dispõe sobre ato de competência exclusiva da autoridade judiciária
(que nem sempre será o Juiz da Infância e da Juventude, pois a competência pode recair em
órgão jurisdicional diverso, ex vi do disposto no art. 148, par. único, da Lei nº 8.069/90), a esta
faz referência expressa, como é o caso do disposto nos arts. 50, 51, §2º, 94, inciso VI, 97, par.
único etc.
É bem verdade que o Juiz da Infância e da Juventude, conforme
disposto no art. 137, da Lei nº 8.069/90, pode rever e reformar a decisão do
Conselho Tutelar, mas isto decorre não da existência de uma “relação de
subordinação” deste em relação àquele, mas sim do princípio elementar
insculpido no art. 5º, inciso XXXV, da Constituição Federal, segundo o qual
nenhuma lesão ou ameaça de direito pode ser excluída da apreciação pelo
Poder Judiciário. Tanto é assim que a revisão judicial das decisões do Conselho
Tutelar não pode ocorrer de ofício, mas apenas “a pedido de quem tenha
legítimo interesse”, sendo desta forma decorrente do regular exercício do poder
jurisdicional, com todas as limitações e mecanismos de controle (como a própria
possibilidade de recurso a outras instâncias da magistratura) a que este está
sujeito.
Na mencionada perspectiva da “desjudicialização” do atendimento da população infanto-juvenil, o Conselho Tutelar foi dotado de algumas prerrogativas funcionais, como a autonomia (cf. art. 131, da Lei nº 8.069/90), que lhe conferem independência na tomada de suas decisões, e a capacidade de promover diretamente a execução destas, através da possibilidade de requisição de determinados serviços públicos (cf. art. 136, inciso III, alínea “a”, da Lei nº 8.069/90).
Como resultado desse conjunto de normas, fica claro que as decisões do Conselho Tutelar, desde que proferidas de forma colegiada4 e no âmbito de suas atribuições5, têm eficácia imediata, independentemente de “ratificação” ou “referendo” pela autoridade judiciária. Na verdade, é o destinatário da decisão, e da eventual determinação nela contida (verdadeira
ordem legal emitida por autoridade pública), seja o particular ou o próprio Poder
Público que, se com ela não concordar, terá de recorrer ao Poder Judiciário para
pedir sua revisão, sob pena da prática da infração administrativa prevista no art.
249, da Lei nº 8.069/90 e mesmo do crime de desobediência, tipificado no art.
330, do Código Penal.
O crime de desobediência restará caracterizado, em especial, quando houver o descumprimento, por parte dos gestores públicos da requisição de um dos serviços públicos relacionados no art. 136, inciso III, alínea “a”, da Lei nº 8.069/90, efetuada pelo Conselho Tutelar no regular exercício de suas atribuições.
Com efeito, parte-se do princípio, antes de mais nada, que os referidos serviços públicos deveriam estar estruturados e adequados ao atendimento prioritário e preferencial à população infanto-juvenil local (cf. arts. 4º, caput e par. único, alínea “b” c/c arts. 87, 88 e 259, par. único, todos da Lei nº 8.069/90), razão pela qual os órgãos responsáveis deveriam fazê-lo
espontaneamente, sem que para tanto sequer houvesse necessidade de encaminhamento do caso pelo Conselho Tutelar. Deveriam também estar articulados (cf. art. 86, da Lei nº 8.069/90) de tal forma que os encaminhamentos efetuados pelo Conselho Tutelar fossem atendidos de imediato,
4 Importante jamais perder de vista que o Conselho Tutelar é um colegiado composto
invariavelmente de 05 (cinco) integrantes (cf. art.132, da Lei nº 8.069/90), cujas decisões, para
terem validade e eficácia, precisam ser tomadas por maioria de votos desse mesmo colegiado.
5 Valendo para tanto observar o disposto nos arts.95, 131, 136, 191 e 194, todos da Lei nº
8.069/90. independentemente de uma requisição formal pois, como dito, na forma da Lei
(e do art. 227, caput, da Constituição Federal), o atendimento deve ser
espontâneo e prioritário.
Uma requisição de serviço efetuada pelo Conselho Tutelar é mais do que um simples encaminhamento, pois se constitui numa ordem6 emanada, como visto acima, por uma autoridade pública que tem atribuições específicas na defesa dos direitos da criança e do adolescente, cuja violação, por força do disposto nos arts. 5º, 208 e 216, da Lei nº 8.069/90, é passível de sanções nas esferas cível, administrativa e mesmo criminal.
Assim sendo, o destinatário de uma decisão do Conselho Tutelar, proferida no regular exercício de suas atribuições, não pode pura e simplesmente ignorá-la, como se esta não tivesse qualquer valor, restando-lhe apenas duas alternativas: seu fiel cumprimento, com a mais absoluta prioridade ou o ajuizamento de pedido de revisão judicial da referida decisão, com base no
art. 137, da Lei nº 8.069/907, sem prejuízo de seu imediato cumprimento,
enquanto não houver decisão judicial que o isente da obrigação (ainda que em caráter liminar), em razão de sua já mencionada eficácia imediata.
Efetuado o pedido de revisão, cabe à autoridade judiciária instaurar procedimento específico, que seguirá a regra geral estabelecida pelo art.153, da Lei nº 8.069/90, onde à luz dos argumentos expendidos pelo interessado, ouvido o Ministério Público e o próprio Conselho Tutelar8 (dentre outras diligências que entender necessárias ou forem requeridas), proferirá
sentença, mantendo ou reformando a decisão do Conselho Tutelar9.
Em não sendo cumprida a determinação do Conselho Tutelar, restará caracterizada a infração administrativa prevista no art. 249, da Lei nº 8.069/90 e, se aquela vier acompanhada da requisição de um dos serviços públicos relacionados no art. 136, inciso III, alínea “a”, do mesmo Diploma Legal, haverá também a prática, por parte do destinatário da medida10, do crime de
desobediência, tipificado no art. 330, do Código Penal, sem prejuízo de outras sanções civis e administrativas, decorrentes de sua omissão no cumprimento de dever elementar, conforme disposto nos arts. 4º, caput e par. único, 5º, 208 e 216, da Lei nº 8.069/90.
O próprio Conselho Tutelar, quando tomar conhecimento do descumprimento de uma de suas decisões, deve não apenas acionar (diretamente) o Poder Judiciário nos moldes do disposto no art. 194, da Lei nº 8.069/90, para fins de instauração de procedimento para apuração da infração administrativa prevista no art. 249, do mesmo Diploma Legal, que terá sido em
tese praticada, mas também provocar o Ministério Público, para fins da tomada
6 Ato administrativo de caráter coercitivo, que goza de presunção de legalidade.
7 Sendo também cabível, logicamente, a impetração de mandado de segurança.
8 Embora o art.153, da Lei nº 8.069/90 não estabeleça um rito específico, conferindo à autoridade judiciária ampla liberdade para coleta de provas, a oitiva do Conselho Tutelar, no sentido de aferir as razões de sua decisão é providência que se mostra fundamental. Tal oitiva pode ser substituída pelo encaminhamento de informações por escrito pelo Órgão (nos moldes do que ocorre quando da impetração de mandado de segurança), sendo também razoável a solicitação/ requisição de cópias dos documentos que serviram de base à decisão impugnada.
9 Sentença esta que, logicamente, poderá ser objeto de apelação pelo interessado, Ministério
Público ou Conselho Tutelar.
10 Que será o responsável pelo órgão público encarregado de prestar o serviço requisitado.
das medidas administrativas e judiciais tendentes a ver assegurado o direito infanto-juvenil ameaçado ou violado, assim como para apuração do citado crime de desobediência11 ou ato de improbidade administrativa por parte do destinatário da medida, notadamente em se tratado de agente público (cf. art. 136, inciso IV c/c arts. 201, inciso VIII e 220, todos da Lei nº 8.069/90).
Claro está, portanto, que as decisões, determinações e requisições de serviço emanadas do Conselho Tutelar, no regular exercício de suas atribuições, devem ser respeitadas e cumpridas de imediato, como se tivessem sido proferidas pela própria autoridade judiciária, à qual o interessado terá de recorrer, fundamentadamente, para ver-se desobrigado de seu
cumprimento. E, enquanto não forem suspensas ou revertidas pela autoridade judiciária, as decisões tomadas pelo Conselho Tutelar, como acima referido, têm eficácia plena, sendo obrigatório o cumprimento da determinação ou requisição respectiva, estando seus destinatários recalcitrantes sujeitos a sanções civis, administrativas, e mesmo criminais, nos moldes do acima exposto. Com a correta interpretação e aplicação da lei se evitará a
subsistência de uma “lógica” manifestamente equivocada e perversa, altamente
prejudicial ao atendimento da população infanto-juvenil, que desconsidera a
autoridade que o Conselho Tutelar representa (assim como suas prerrogativas
funcionais), fazendo do Órgão apenas “mais um degrau” a ser galgado para se chegar até o Poder Judiciário, na busca de uma efetiva solução para os problemas enfrentados por crianças, adolescentes e suas respectivas famílias (que assim acaba sendo indevidamente postergada), quando foi aquele concebido (e para tanto dotado de poderes-deveres equiparados aos conferidos à autoridade judiciária) para se tornar uma instância resolutiva dos casos sob
sua responsabilidade, com o máximo de rapidez e eficiência.
O respeito às decisões do Conselho Tutelar, bem como seu imediato cumprimento por seus destinatários, por outro lado, permitirá que as crianças e adolescentes que se encontrem com seus direitos ameaçados ou violados nas hipóteses do art. 98, da Lei nº 8.069/9012, assim como seus pais ou responsável, recebam desde logo o atendimento e o tratamento que se fizerem necessários, não sofrendo os prejuízos decorrentes da demora da análise do
caso pela Justiça da Infância e da Juventude, que assim terá melhores condições de atender os casos de sua competência, com ênfase para as questões coletivas, sempre na busca da forma mais célere e eficaz de proporcionar a todas as crianças e adolescentes a proteção integral que há tanto lhes foi prometida.
Conclusões:
1. O Conselho Tutelar é a autoridade pública à qual a Lei nº 8.069/90 confiou o atendimento especializado e a rápida (e efetiva) solução dos casos envolvendo
11 Assim como outros, eventualmente decorrentes da conduta praticada.
12 Mesmo o atendimento da criança acusada da prática de ato infracional, nos moldes do previsto nos arts. 105 e 136, inciso I, da Lei nº 8.069/90, deve ser voltado à análise da presença de uma das situações previstas no art. 98, do mesmo Diploma Legal, já que não cabe ao Conselho Tutelar (que não é órgão de segurança pública), a apuração da efetiva participação da criança na infração a ela atribuída.
5 a ameaça ou violação dos direitos de crianças e adolescentes nas hipóteses do
art. 98, da Lei nº 8.069/90, na perspectiva de evitar o acionamento do Poder Judiciário sempre que necessário fazer com que família, sociedade e, em especial, o Poder Público, cumpram seus deveres elementares para com os mesmos (o que deve ocorrer de forma espontânea e prioritária, inclusive sob pena de responsabilidade - cf. arts. 4º e 5º, da Lei nº 8.069/90);
2. O Conselho Tutelar possui plena autonomia funcional para tomada de decisões no âmbito de suas atribuições, sendo dotado de poderes e deveres equiparados aos da autoridade judiciária, bem como da prerrogativa de promover diretamente (por iniciativa própria, ndependentemente de recurso ao Poder Judiciário) a execução de suas decisões, inclusive, se necessário, por
intermédio da requisição de serviços públicos (arts. 131 e 136, inciso III, alínea
“a”, da Lei nº 8.069/90);
3. As decisões do Conselho Tutelar têm eficácia imediata, independentemente de sua “ratificação” pela autoridade judiciária ou por qualquer outro órgão, sendo obrigatório seu pronto cumprimento, por parte de seu destinatário (particular ou órgão do Poder Público), a partir do seu conhecimento;
4. Caso discorde do teor da decisão tomada pelo Conselho Tutelar, a única alternativa que resta ao seu destinatário, por força do disposto no art. 137, da Lei nº 8.069/90, é o ajuizamento de pedido de sua revisão judicial13, sem prejuízo do imediato cumprimento da determinação ou requisição, enquanto sua execução não for suspensa ou revogada por decisão judicial;
5. O descumprimento das decisões tomadas pelo Conselho Tutelar caracteriza,
em tese, a infração administrativa prevista no art. 249, da Lei nº 8.069/90, e o descumprimento das requisições de serviço, efetuadas com fundamento no art. 136, inciso III, alínea “a”, do mesmo Diploma Legal (que têm a natureza jurídica de ordem - presumivelmente legal - de funcionário público14), configura, também em tese, o crime de desobediência, tipificado no art. 330, do Código Penal, sem prejuízo da aplicação de outras sanções civis, administrativas e mesmo criminais, como decorrência da violação dos direitos infanto-juvenis que a
intervenção do Conselho Tutelar visava resguardar (cf. arts. 5º, 208 e 216, da Lei nº 8.069/90);
6. Ao tomar conhecimento do descumprimento de uma de suas decisões, o próprio Conselho Tutelar deve representar imediatamente ao Juiz da Infância e da Juventude, na forma prevista pelo art. 194, da Lei nº 8.069/90, para fins de instauração de procedimento para apuração da infração administrativa prevista no art. 249, do mesmo Diploma Legal, assim como também provocar o Ministério Público, para fins da tomada das medidas administrativas e judiciais
13 Sendo também admissível, como acima mencionado, a impetração de mandado de segurança.
14 Até porque os membros do Conselho Tutelar são considerados “funcionários públicos” para
fins penais (cf. art.327, do Código Penal) e “agentes públicos” para fins de incidência da Lei nº
8.429/92 (cf. art.2º, do citado Diploma Legal).
6 tendentes a ver assegurado, com a presteza devida, o direito infanto-juvenil que esteja sendo ameaçado ou violado, sem prejuízo da apuração da prática do citado crime de desobediência ou ato de improbidade administrativa (dentre outras condutas ilícitas) por parte do destinatário da medida;
7. Para que o particular e/ou órgão do Poder Público destinatários da decisão do Conselho Tutelar não tenham de cumprir - com a prioridade absoluta devida - a determinação ou requisição que lhes foi imposta, precisam antes obter sua suspensão ou revisão junto ao Poder Judiciário, pois do contrário serão responsabilizados civil, administrativa e mesmo criminalmente por sua omissão.

Fonte: Dr Murillo José Digiácomo1

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