domingo, 2 de maio de 2010

Conselho Tutelar: parâmetros para a interpretação do alcance de sua atuação1.

Dentre as inúmeras inovações advindas com o Estatuto da
Criança e do Adolescente, a obrigatoriedade da instalação, em todos os
municípios brasileiros, de ao menos 01 (um) Conselho Tutelar, órgão que
substituindo boa parte das atribuições do antigo "Juiz de Menores" é, por
definição legal, "...permanente e AUTÔNOMO, não jurisdicional, encarregado
pela sociedade de zelar pelo cumprimento dos direitos da criança e do
adolescente..." (art. 131 da Lei nº 8.069/90 - grifei), foi sem dúvida um grande
passo rumo à democratização e maior agilidade na solução de problemas
relacionados à violação de direitos fundamentais de crianças e adolescentes.
Peça-chave de todo o Sistema de Garantias idealizado pelo
legislador estatutário, ao Conselho Tutelar cabe, dentre outras atribuições, o
encaminhamento de crianças e adolescentes que se encontram em situação de
risco na forma do art. 98 da Lei nº 8.069/90, bem como a criança acusada da
prática de ato infracional (conforme art. 105 do mesmo Diploma Legal),
juntamente com seus pais ou responsável, a programas específicos também
expressamente previstos em lei3, cuja necessidade de criação, manutenção e
ampliação o Órgão, melhor do que qualquer outro, tem condições de atestar - e
cobrar junto ao Executivo local.
Importante aqui abrir um parênteses para deixar claro que,
por "Executivo", deve-se também (e especialmente) compreender o Conselho
Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente, Órgão que detém a
competência (e portanto o poder-dever) constitucional de formular a política de
atendimento à criança e ao adolescente no município e também de fiscalizar o fiel
cumprimento de suas deliberações por parte do administrador público4.
Infelizmente, a falta de uma adequada compreensão acerca
da importância do papel e das atribuições/poderes do Conselho Tutelar, tanto de
parte das autoridades públicas e população em geral quanto, por vezes, de
integrantes do próprio Órgão, tem levado a inúmeras distorções e problemas na
sua forma de atuação e compreensão do exato sentido de sua "autonomia", seja
em razão de sua omissão, seja como resultado de abuso ou desvio de poder,
tornando necessária a criação de mecanismos de fiscalização de sua atuação e
mesmo de controle e repressão da conduta inadequada de seus integrantes.
1 Recomenda-se a leitura conjunta com o artigo "Conselho Tutelar: poderes e deveres face da Lei
nº 8.069/90", que se encontra publicado na página do CAOPCA/PR na internet, além de outros
acerca do tema.
2 Promotor de Justiça e membro da Associação Brasileira de Magistrados e Promotores de Justiça
da Infância e da Juventude - ABMP, no estado do Paraná (murilojd@mp.pr.gov.br).
3 Vide arts. 90, 101, 112 e 129 do mesmo Diploma Legal citado.
4 Conforme art. 227, §7º c/c art. 204, ambos da Constituição Federal e art. 88, inciso II da Lei nº
8.069/90.
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Ora, se por um lado é certo que o Conselho Tutelar detém
uma significativa parcela do poder e, por conseguinte, da soberania estatal, tendo
sido em alguns aspectos equiparado à autoridade judiciária5, cujas atribuições,
como dito acima (e se extrai da inteligência do art. 262 da Lei nº 8.069/90),
substitui, não estando subordinado quer ao Prefeito Municipal (cuja atuação em
prol da criança e do adolescente inclusive ajuda a monitorar), quer a qualquer
outro órgão ou autoridade pública, por outro também é certo que esse mesmo
poder, como de resto ocorre com todos os demais agentes políticos6, está sujeito
a limitações além, é claro, de uma contínua fiscalização por parte dos demais
integrantes do “Sistema de Garantias” elaborado pelo Estatuto da Criança e do
Adolescente, na clássica concepção de que um regime verdadeiramente
democrático pressupõe a existência de "freios e contrapesos" entre os diversos
poderes constituídos.
E é nessa perspectiva que o conceito de "autonomia" do
Conselho Tutelar deve ser analisado e interpretado, inconcebível que é, a
qualquer órgão público, seja a qual poder pertença ou represente, uma atuação
livre do controle de outros poderes, órgãos, instâncias e mesmo por parte do
cidadão comum, na medida em que é o povo, em última análise o detentor de
todo o poder (nesse sentido temos a expressa definição do art. 1º, par. único, da
Constituição Federal), e o destinatário de toda atividade pública, que ideológica e
presumivelmente tem por escopo o bem estar de toda coletividade.
Assim sendo, a autonomia que, por definição, o Conselho
Tutelar possui, se constitui não em um "privilégio" para seus integrantes, que
estariam livres de prestar contas de seus atos quer à administração pública (à
qual, queiram ou não, estão vinculados), quer a outras autoridades e membros da
comunidade, mas sim importa numa prerrogativa indispensável ao exercício das
atribuições do Órgão, enquanto colegiado, que por vezes irá contrariar os
interesses do Prefeito Municipal e de outras pessoas influentes que, por ação ou
omissão, estejam ameaçando ou violando direitos de crianças e adolescentes
que devem ser objeto de sua tutela7.
De fato, não seria lógico que o legislador concedesse ao
Conselho Tutelar o status de "agente político", com poderes equiparados aos da
autoridade judiciária, podendo inclusive promover diretamente a execução de
suas decisões, para tanto expedindo requisições a órgãos públicos8, sob pena da
prática de infração administrativa (conforme art. 249 da Lei nº 8.069/90) e
mesmo, a depender da situação, de crime (conforme art. 236 do mesmo Diploma
Legal), sem dar-lhe a garantia de que poderia exercer suas atribuições de forma
livre e independente, colocando-o a salvo da ingerência e/ou de repreensões por
parte de outras autoridades públicas9.
6 Sobre o tema, vide definição de Hely Lopes Meirelles contida no artigo acima citado.
7 Valendo observar que, não por acaso, o art. 98 da Lei nº 8.069/90 relacionou, como primeira
hipótese de situação de risco envolvendo crianças e adolescentes, justamente a "...ação ou
omissão da sociedade ou do Estado" (verbis).
8 Cf. art. 136, inciso III, alínea “a”, da Lei nº 8.069/90.
9 Desde que, é claro, tenham sido respeitados os parâmetros legais que norteiam sua atuação,
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A autonomia que detém o Conselho Tutelar, portanto, deve
ser considerada como sinônimo de INDEPENDÊNCIA FUNCIONAL que o Órgão
possui, enquanto COLEGIADO, se constituindo numa indispensável prerrogativa
para o exercício de suas atribuições, não significando, em absoluto, que não
possa ser aquele fiscalizado em sua atuação cotidiana pela administração pública
ou outros órgãos e poderes constituídos e/ou que não tenha de “prestar contas”
de seus atos, sempre que necessário.
Como resultado dessa constatação, e também em razão da
ausência de uma "hierarquização" entre os diversos integrantes do
supramencionado ”Sistema de Garantias” idealizado pela Lei nº 8.069/90,
nenhum outro órgão ou autoridade pública pode interferir na atuação e decisões
do Conselho Tutelar (que por sua vez independem do "referendo" ou aprovação
de outras instâncias), desde que respeitados os preceitos legais que lhe servem
de parâmetro, nem "determinar" que este pratique atos que são estranhos à
função e/ou não contidos no rol de suas atribuições estabelecido pelo Estatuto da
Criança e do Adolescente.
Por outro lado, qualquer pessoa do povo pode questionar a
atuação e mesmo a postura individual dos membros do Conselho Tutelar sempre
que estas se mostrem de qualquer modo ilegais ou abusivas, seja por ação, ou
por omissão10, podendo nesse sentido provocar tanto a autoridade judiciária,
quanto o Ministério Público11, sendo a este facultada a expedição de
recomendações administrativas visando a melhoria do serviço público prestado
pelo Órgão12 e, se necessário, a propositura de ação civil pública para fins de
afastamento de um ou mais de seus integrantes que demonstrem total e
comprovada incapacidade para o exercício responsável das relevantes
atribuições que lhe são conferidas13.
A propósito, uma questão interessante resulta da forma
como se dá o controle da atuação dos conselheiros tutelares individualmente
considerados, bem como a eventual aplicação de sanções administrativas àquele
que descumpre seus deveres funcionais ou pratica atos que colocam em risco a
própria imagem e credibilidade do Órgão ao qual integra.
Tendo em vista a omissão da Lei nº 8.069/90 acerca da
matéria, o legislador municipal, face o disposto no art. 30, inciso II da Constituição
dentre os quais se incluem aqueles expressos no art. 37 da Constituição Federal, notadamente
quanto à necessária observância dos princípios da legalidade, impessoalidade e moralidade em
todas as suas intervenções.
10 Inclusive no tocante à sua freqüência e conduta pessoal, inconcebível que é um conselheiro
tutelar que não cumpre expediente nem comparece aos plantões (se houver), freqüenta bares e
boates mal-afamadas, costuma se embriagar, mantém "casos" amorosos com adolescentes, utiliza
o veículo do Conselho Tutelar para seu uso particular, deixa de exercer atos de ofício, seja por
qual razão (preguiça, medo de represálias), não levando ao conhecimento do colegiado fatos que,
em tese, representam violação de direitos de crianças e adolescentes, ainda que praticados por
omissão das demais autoridades públicas etc.
11 Conforme art. 220 da Lei nº 8.069/90.
12 Cf. art. 201, §5º, alínea “c”, da Lei nº 8.069/90.
13 Quando inexistentes e/ou inoperantes mecanismos de controle na via administrativa, que serão
adiante comentados.
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Federal, encontrou maior liberdade para estabelecer os referidos mecanismos de
controle de acordo com as necessidades locais, tendo em alguns casos criado
situações que acabam por comprometer a própria autonomia do Conselho
Tutelar, acarretando assim a inconstitucionalidade da norma respectiva, por
afronta ao âmbito da competência legislativa do município.
A delegação de tal tarefa ao Conselho Municipal dos
Direitos da Criança e do Adolescente, embora juridicamente admissível e
largamente difundida (ao menos no Estado do Paraná), não é a meu ver a melhor
solução, na medida em que não há entre este e Conselho Tutelar qualquer
relação de subordinação ou mesmo vinculação de ordem administrativa, tendo
aquele Órgão deliberativo atribuições seguramente muito mais relevantes que
esta para ocupar seu tempo e sua atenção.
Vale aqui abrir mais um parênteses para reforçar a idéia de
que o Conselho Tutelar é um Órgão colegiado, e que seu poder de decisão, tanto
em relação às medidas que aplica, requisições que expede e outras atribuições
previstas na Lei nº 8.069/90, resulta unicamente de seu funcionamento como tal
(e não da iniciativa de um conselheiro isolado, ainda que seja este o "presidente"
ou “coordenador” do Órgão14, que a rigor não detém qualquer poder ou
prerrogativa a mais que os demais), para o que deve seu regimento interno
prever, a depender do volume de serviço, uma ou mais sessões deliberativas
diárias ou semanais, onde os casos "atendidos" individualmente são levados à
plenária para discussão e deliberação quanto às providências a serem tomadas.
Nessa perspectiva, a atuação de um conselheiro tutelar
isolado não pode (ou ao menos não deveria) ser automaticamente creditada (ou
debitada, dependendo do ponto de vista) a todo o Conselho Tutelar, valendo
lembrar que é a este, enquanto colegiado (e não a seus membros,
individualmente considerados), que se atribui as prefaladas autonomia e
independência funcional.
Fechado o parênteses, de modo a evitar omissões e/ou
abusos, por parte de integrantes do Conselho Tutelar, o mais correto, no
entender do autor, seria criar, via lei municipal regulamentadora das atividades do
Órgão, um mecanismo interno, a ser implementado no seu próprio âmbito,
destinado ao controle "disciplinar" daquele conselheiro tutelar que descumpre
seus deveres funcionais e/ou pratica atos atentatórios aos princípios que regem a
conduta que se espera de todo servidor público (além de outros exigíveis
especificamente daqueles que lidam com crianças e adolescentes), devendo é
claro, a bem dos princípios constitucionais do "Juiz natural", da legalidade, do
devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa15, haver expressa
previsão legal das condutas que importam na violação de tais deveres e
princípios, das sanções em tese a elas cominadas16, autoridade processante e
14 Figura cuja existência, além de absolutamente desnecessária para o funcionamento do
Conselho Tutelar, tem sido duramente criticada por muitos, inclusive integrantes do próprio Órgão.
15 Cf. art. 5º, incisos XIV e XV, da Constituição Federal.
16 Podendo (e a meu ver devendo) haver alternativas à exclusão do Conselho, como seria o caso
do afastamento temporário, com redução proporcional dos subsídios eventualmente devidos (com
imediata assunção do suplente no período, de modo a não desfalcar e assim prejudicar o regular
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encarregada do julgamento administrativo e procedimento a ser observado.
De modo a dar maior transparência à atuação dessa
instância administrativa, que seria afinal composta pelos demais conselheiros
tutelares, com ou sem a participação de outros órgãos e autoridades locais
(representantes do CMDCA, Câmara Municipal etc.), seria interessante haver a
previsão da comunicação obrigatória, por parte da autoridade processante, da
instauração do procedimento administrativo (ou mesmo do oferecimento de
representação por parte da vítima do abuso ou omissão do conselheiro acusado),
ao CMDCA, Ministério Público e Poder Judiciário, de modo que possam exercer,
querendo, a fiscalização de todo o processo, inclusive de modo a impedir ou
minimizar a possibilidade de ocorrência do execrável "corporativismo".
Importante mencionar que mecanismos similares de controle
interno da ação de membros de um determinado órgão ou instituição, existem em
profusão, sendo este exercido por intermédio das chamadas "corregedorias".
Apenas quando tais mecanismos falham em decidir com isenção, imparcialidade
e correção, é que se cogita na criação de mecanismos de controle externo, como
atualmente ocorre com o Poder Judiciário e Ministério Público17.
Nessa perspectiva, não nos parece que, antes de que seja
dado ao Conselho Tutelar um "voto de confiança" no sentido da capacidade de o
próprio Órgão controlar as ações abusivas de seus integrantes, tarefa que a
princípio lhe interessa, até mesmo para que estes não venham a comprometer a
imagem da instituição perante a sociedade, devamos partir para a criação de
outras instâncias de controle, pois afinal, é aquele composto, em razão do
disposto no art. 135 da Lei nº 8.069/90, por cidadãos que gozam de "presunção
de idoneidade moral" (verbis), tendo assim, até que se prove o contrário, plenas
condições de resolver, sponte propria e com isenção e responsabilidade,
problemas envolvendo seus componentes.
De qualquer sorte, seja qual for a "fórmula" encontrada pelo
legislador para o controle (interno e/ou externo) da atuação dos membros do
Conselho Tutelar individualmente considerados, é importante que esta não venha
a ferir ou de qualquer modo arranhar a autonomia e independência funcional de
que goza o referido Órgão enquanto colegiado, cujas decisões, observados os
princípios e parâmetros legais estabelecidos para sua atuação, são soberanas e
devem ser respeitadas por seus destinatários, a menos, é claro, que em contrário
decida o Poder Judiciário, após devidamente provocado, seja através do pedido
revisional a que se refere o art. 137 da Lei nº 8.069/9018, seja através de outro
remédio jurídico qualquer, como é o caso do mandado de segurança, manejável
contra atos ilegais ou abusivos praticados pelas autoridades públicas em geral.
exercício das atribuições do Órgão, que como vimos somente pode funcionar enquanto colegiado).
17 Por intermédio do Conselho Nacional de Justiça - CNJ e do Conselho Nacional do Ministério
Público - CNMP, respectivamente.
18 Chamamos a atenção para o fato de o art. 137 da Lei nº 8.069/90 não autorizar que o Juiz
proceda de ofício a revisão da decisão do Conselho Tutelar, o que de um lado reafirma o princípio
da inércia da jurisdição e de outro reforça a idéia da ausência de qualquer relação de subordinação
entre ambas autoridades públicas.
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Registre-se, por fim, que a existência de mecanismos de
controle como os acima referidos (que também podem e devem ser criados em
relação aos membros do Conselho Municipal de Direitos da Criança e do
Adolescente, muitas vezes omissos em comparecerem nas reuniões do Órgão e
também em exercerem sua competência deliberativa e fiscalizatória das ações do
administrador público), serve para "depurar" o Órgão e aumentar sua
credibilidade e respeitabilidade perante a população, que em última análise será
a maior beneficiada com sua atuação de forma adequada, transparente,
competente e diligente.
Conclui-se, portanto, que:
1 - A "autonomia" do Conselho Tutelar a que se refere o art.
131 da Lei nº 8.069/90 é sinônimo de independência funcional, que por sua vez
se constitui numa prerrogativa do Órgão, enquanto colegiado, imprescindível ao
exercício de suas atribuições;
2 - Embora, como resultado de sua prefalada autonomia, o
Conselho Tutelar não necessite submeter suas decisões ao crivo de outros
Órgãos e instâncias administrativas, lhe tendo sido inclusive conferidos
instrumentos para execução direta das mesmas (conforme art. 136, inciso III, da
Lei nº 8.069/90), estão aquelas sujeitas ao controle de sua legalidade e
adequação pelo Poder Judiciário, mediante provocação por parte de quem
demonstre legítimo interesse ou do Ministério Público;
3 - A autonomia que detém o Conselho Tutelar para o
exercício de suas atribuições não o torna imune à fiscalização de outros
integrantes do “Sistema de Garantias” idealizado pela Lei nº 8.069/90, com os
quais deve atuar de forma harmônica, articulada e cordial, com respeito e
cooperação mútuas;
4 - Fundamental que a lei municipal estabeleça mecanismos
internos e/ou externos de controle da atuação dos conselheiros tutelares
individualmente considerados, bem como regulamente a forma de aplicação de
sanções administrativas àquele que, por ação ou omissão, descumpre seus
deveres funcionais ou pratica atos que colocam em risco a própria imagem e
credibilidade do Conselho Tutelar, podendo aqueles existirem tanto no âmbito
interno quanto externo ao Órgão.
Em qualquer caso, é preciso ter em mente que o Conselho
Tutelar é uma instituição democrática, cuja existência e adequado funcionamento
são essenciais ao “Sistema de Garantias dos Direitos da Criança e do
Adolescente”, razão pela qual sua imagem e credibilidade não podem ser de
qualquer modo prejudicadas pela prática de abusos ou pela omissão de seus
integrantes.

Fonte: Dr Murillo José Digiácomo2

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