sexta-feira, 15 de janeiro de 2010

"Limites e Obstáculos para o cumprimento do Papel dos Conselhos Tutelares"


“Limites e obstáculos para o cumprimento do papel dos Conselhos Tutelares na garantia de direitos de crianças e de adolescentes em situação de violência sexual”.



*Murillo José Digiácomo - Promotor de Justiça do Centro Operacional as Promotorias das Crianças e Adolescentes do Paraná.

1. Introdução:

Um dos temas mais complexos e tormentosos, em se tratando de violação dos direitos de crianças e adolescentes, diz respeito aos casos de violência, abuso e exploração sexual.
As dificuldades vão desde a identificação de casos concretos, que muitas vezes ocorrem no âmbito das próprias famílias, envolvendo parentes ou pessoas próximas, à inexistência, como regra quase que absoluta, de políticas públicas específicas, destinadas à prevenção e ao atendimento eficaz de crianças e adolescentes vítimas, bem como de suas respectivas famílias.
O legislador reservou ao Conselho Tutelar um papel de destaque no enfrentamento dos casos de violência, abuso e exploração sexual de crianças e adolescentes, devendo o órgão atuar em diversas frentes, através de iniciativas das mais variadas, que devem ir muito além do simples atendimento dos casos individuais levados a seu conhecimento, pois aqui, talvez mais do que em qualquer outra situação de violação de direitos infanto-juvenis, a efetiva solução do problema irá demandar uma ação articulada de inúmeros órgãos e setores governamentais e não governamentais, bem como a atuação de profissionais altamente capacitados, como parte integrante de uma política pública especificamente destinada a tal finalidade.

2. Da distinção entre violência, abuso e exploração sexual:

Como ponto de partida para a presente explanação, cumpre efetuar uma distinção, ainda que para fins meramente didáticos, do que deve ser entendido como violência, abuso e exploração sexual de crianças e adolescentes.
Embora seja possível considerar a violência sexual como o gênero, do qual o abuso e a exploração sexual se constituem espécies, entendemos conveniente distinguir os conceitos, para melhor compreensão de cada uma das modalidades. Para tanto, utilizaremos a conceituação levada a efeito pelo Serviço de Enfrentamento à Violência, ao Abuso e a Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes (antigo Programa Sentinela), desenvolvido pelo Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, com o objetivo de desenvolver ações articuladas destinadas ao atendimento às crianças e aos adolescentes violados sexualmente:
a) Violência sexual: constitui-se de atos praticados com finalidade sexual que, por serem lesivos ao corpo e à mente do sujeito violado (crianças e adolescentes), desrespeitam os direitos e as garantias individuais como liberdade, respeito e dignidade previstas na Lei n° 8.069/90 - Estatuto da Criança e do Adolescente (Arts. 7°,15, 16, 17 e 19);
b) Abuso sexual: caracteriza-se por qualquer ação de interesse sexual de um ou mais adultos em relação a uma criança ou adolescente, podendo ocorrer tanto no âmbito intra-familiar - relação entre pessoas que tenham laços afetivos -, quanto no âmbito extra-familiar - relação entre pessoas desconhecidas;
c) Exploração sexual: caracteriza-se pela relação mercantil, por intermédio do comércio do corpo/sexo, por meios coercitivos ou não, e se expressa de quatro formas: pornografia, tráfico, turismo sexual e prostituição .
Todas as situações acima referidas representam formas de violência contra crianças e adolescentes, que atentam contra direitos fundamentais dos quais estes são titulares, e toda criança ou adolescente submetida a qualquer uma delas deve ser sempre considerada vítima.
Tal distinção e conceituação se mostram relevantes para facilitar a identificação de casos de violência sexual (como doravante passaremos a designar todas as modalidades citadas), que ocorrerá sempre que uma determinada pessoa, de qualquer modo, se utiliza de uma criança ou adolescente para qualquer ação de interesse sexual seu ou de outrem, independentemente do consentimento ou do estado de consciência da vítima, cuja ausência apenas fará agravar a infração praticada e o grau de reprovabilidade da respectiva conduta do agente.
Como melhor veremos a seguir, diante da mera suspeita ou da confirmação de que uma criança ou adolescente está sendo submetida a qualquer forma de violência sexual, cabe ao Poder Público obrigatoriamente intervir, desencadeando uma série de ações articuladas voltadas tanto à repressão e punição do agente, quanto ao atendimento e tratamento da vítima e sua família, visando minorar as conseqüências deletérias da violação sofrida, bem como evitar sua repetição.

3. Das normas relativas à violência, abuso e exploração sexual previstas na Constituição Federal, Estatuto da Criança e do Adolescente e normativa internacional:

O art.227, caput, da Constituição Federal estabelece, de forma expressa, que é dever da família, da sociedade e do Poder Público colocar crianças e adolescentes “a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”, o que logicamente abrange o combate à violência sexual, sendo o §4°, do mesmo dispositivo constitucional mais explícito, ao prever, de maneira expressa, que “a lei punirá severamente o abuso, a violência e a exploração sexual de crianças e adolescentes”.
A Lei n° 8.069/90 - Estatuto da Criança e do Adolescente, por sua vez, também garante em seu art.5°, de forma genérica, a proteção de crianças e adolescentes contra “qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”, dispondo seu art.18 que “é dever de todos velar pela dignidade da criança e do adolescente, pondo-os a salvo de qualquer tratamento desumano, violento, aterrorizante, vexatório ou constrangedor”, regra também contida no art.70, do mesmo Diploma Legal, porém agora com uma conotação eminentemente preventiva: “é dever de todos prevenir a ocorrência de ameaça ou violação dos direitos da criança e do adolescente”.
Visando dar maior concretude a tais disposições, os arts.13 e 56, inciso I, da Lei n° 8.069/90 impõem a profissionais da área da saúde e da educação, a obrigação de comunicar ao Conselho Tutelar , os casos de mera suspeita ou, é claro, de confirmação de “maus tratos” praticados contra crianças e adolescentes , o que também compreende (numa interpretação extensiva autorizada pela inteligência dos arts.1°, 5° e 6°, c/c arts.18 e 70, todos do mesmo Diploma Legal), a suspeita ou confirmação de violência sexual, inclusive sob pena da prática da infração administrativa prevista no art.245 estatutário.
De forma mais explícita, o art.130, da Lei n° 8.069/90 dispõe que “verificada a hipótese de maus-tratos, opressão ou abuso sexual impostos pelos pais ou responsável, a autoridade judiciária poderá determinar, como medida cautelar, o afastamento do agressor da moradia comum” , medida que visa assegurar à criança ou o adolescente vitimizado o exercício de seu direito à convivência familiar, devendo o quanto possível permanecer na companhia de seus irmãos e do pai, mãe ou responsável que não tenha sido o(a) causador(a) do abuso praticado, de preferência em sua própria residência .
Ainda visando estimular e facilitar a denúncia de casos de violência sexual contra crianças e adolescentes, a Lei n° 11.577/2007, de 22/11/2007, tornou obrigatória a divulgação, em hotéis, motéis, pousadas e outros que prestem serviços de hospedagem, bares, restaurantes, lanchonetes e similares, casas noturnas etc., de mensagem relativa à exploração sexual e tráfico de crianças e adolescentes apontando formas para acionar as autoridades competentes. Vale mencionar, a propósito, que a hospedagem de crianças e adolescentes desacompanhadas ou não autorizadas pelos pais ou responsável em “hotéis, motéis, pensões e congêneres” (locais nos quais, muitas vezes, ocorre a exploração sexual), caracteriza a infração administrativa prevista no art.250, da Lei n° 8.069/90, e o ingresso e permanência de crianças e adolescentes desacompanhados de seus pais ou responsável em “boates ou congêneres” podem ser limitados pela autoridade judiciária, por intermédio de portaria judicial específica (cf. art.149, inciso I, alínea “c”, do mesmo Diploma Legal).
Por fim, é de se salientar que paralelamente aos tipos penais relativos aos chamados “crimes contra os costumes”, relacionados nos arts.213 a 232, do Código Penal, e do crime de “abandono moral”, previsto no art.247, do mesmo Diploma Legal , o art.241, da Lei n° 8.069/90, tipifica a conduta de “apresentar, produzir, vender, fornecer, divulgar ou publicar, por qualquer meio de comunicação, inclusive rede mundial de computadores ou internet, fotografias ou imagens com pornografia ou cenas de sexo explícito envolvendo criança ou adolescente”, e o art.244-A, do mesmo Diploma Legal também considera crime “submeter criança ou adolescente ... à prostituição ou exploração sexual”, prevendo de maneira expressa que “incorrem nas mesmas penas o proprietário, o gerente ou o responsável pelo local em que se verifique a submissão de criança ou adolescente às práticas referidas no caput deste artigo” (cf. art.244-A, §1°, da Lei n° 8.069/90), cuja cassação da licença de localização e de funcionamento se constitui em efeito obrigatório da condenação (cf. art.244-A, §2°, do mesmo Diploma Legal).
Na normativa internacional, a matéria é tratada, antes de mais nada, pelo art.19 da Convenção da Organização das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança e do Adolescente , de onde se extrai:
1. Os Estados-partes tomarão todas as medidas legislativas, administrativas, sociais e educacionais apropriadas para proteger a criança contra todas as formas de violência física ou mental, abuso ou tratamento negligente, maus-tratos ou exploração, inclusive abuso sexual, enquanto estiver sob a guarda dos pais, do representante legal ou de qualquer outra pessoa responsável por ela.
2. Essas medidas de proteção deverão incluir, quando apropriado, procedimentos eficazes para o estabelecimento de programas sociais que proporcionem uma assistência adequada à criança e às pessoas encarregadas de seu cuidado, assim como outras formas de prevenção e identificação, notificação, transferência a uma instituição, investigação, tratamento e acompanhamento posterior de caso de maus-tratos a crianças acima mencionadas e, quando apropriado, intervenção judiciária.
Ainda no âmbito internacional, tratam do combate à violência sexual contra crianças e adolescentes, em suas diversas formas, o Protocolo Facultativo à Convenção sobre os Direitos da Criança referente à venda de crianças, à prostituição infantil e à pornografia infantil, aprovado em Nova York em 25/05/2000 ; o Protocolo Adicional à Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional Relativo à Prevenção, Repressão e Punição do Tráfico de Pessoas, em Especial Mulheres e Crianças, aprovado em Nova York em 15/11/2000 ; a Convenção Interamericana sobre Tráfico Internacional de Menores, assinada na Cidade do México em 18/03/1994 , e a Convenção sobre os Aspectos Civis do Seqüestro Internacional de Crianças, concluída na cidade de Haia, em 25/10/1980 , todos em pleno vigor no Brasil.
Como é possível observar, inúmeras são as normas jurídicas que dão suporte às ações de combate à violência sexual contra crianças e adolescentes, sendo certo que a elas ainda se somam outras tantas instituídas no sentido da proteção integral de crianças e adolescentes.
Todo esse arcabouço jurídico, no entanto, de nada adiantará se os órgãos e autoridades públicas responsáveis não agirem de forma adequada e articulada, com profissionalismo e dedicação, buscando a solução do problema em suas origens, através de políticas e programas de atendimento voltados à prevenção e ao tratamento especializado das vítimas e de suas famílias.

4. O Conselho Tutelar e o “Sistema de Garantias dos Direitos da Criança e do Adolescente”:

O Conselho Tutelar é definido pelo art.131, da Lei n° 8.069/90 como “órgão permanente e autônomo, não jurisdicional, encarregado pela sociedade de zelar pelo cumprimento dos direitos da criança e do adolescente, definidos nesta Lei”.
Trata-se de uma instituição essencial ao “Sistema de Garantias dos Direitos da Criança e do Adolescente”, instituído pela Lei n° 8.069/90 com o objetivo de proporcionar, de maneira efetiva, a “proteção integral” prometida à criança e ao adolescente já pelo art.1°, do citado Diploma Legal.
É fundamental, no entanto, que o Conselho Tutelar tenha a consciência de que, agindo de forma isolada, por mais que se esforce não terá condições de suprir o papel reservado aos demais integrantes do aludido “Sistema de Garantias” , não podendo assim prescindir da atuação destes.
Um dos desafios a serem enfrentados pelo Conselho Tutelar, portanto, é fazer com que os diversos órgãos, autoridades e entidades que integram o referido “Sistema de Garantias” aprendam a trabalhar em “rede” , dialogando e compartilhando idéias e experiências entre si, buscando, juntos, o melhor caminho a trilhar, tendo a consciência de que a efetiva e integral solução dos problemas que afligem a população infanto-juvenil local é de responsabilidade de TODOS.
Tal entendimento também é válido para o atendimento e busca de uma efetiva solução para os casos de violência sexual contra crianças e adolescentes, que demandará uma ação articulada entre o Conselho Tutelar, o Ministério Público, as Polícias Civil e Militar, a Justiça da Infância e Juventude, e os órgãos públicos responsáveis pela execução de políticas nas áreas da saúde, educação, assistência social (apenas para citar alguns), entidades de atendimento e profissionais de diversas áreas do conhecimento, cada qual cumprindo seu papel e zelando para que os demais também o façam.
E a definição do papel de cada um, bem como a união de todos, para que este objetivo primordial seja alcançado, deve ser promovida pelo Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente , ao qual também incumbe, com o apoio do Conselho Tutelar, como melhor veremos adiante, a elaboração de uma política pública específica, destinada ao atendimento de demandas desta natureza.
A relação entre o Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente e o Conselho Tutelar, a propósito, deve ser de proximidade e parceria, pois um depende do outro para cumprir a contento seus deveres institucionais, na medida em que cabe a este fornecer àquele as informações relativas às maiores demandas e deficiências estruturais existentes no município, que servirão de base à definição das ações intersetoriais a serem desenvolvidas no sentido da efetiva solução dos problemas daí decorrentes, tanto no plano individual quanto coletivo (inclusive com uma preocupação preventiva).
Reputa-se salutar, portanto, que o Conselho Tutelar seja o principal “incentivador” da atuação político-institucional do Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente, tendo assento permanente, com direito a “voz”, nas reuniões do órgão , de modo a obter uma rápida resposta dos representantes das políticas públicas setoriais que o integram, seja no que diz respeito a determinado caso em particular, que não esteja sendo possível solucionar, com as intervenções até então realizadas, seja no sentido da elaboração de uma política pública específica, destinada a atender demandas similares que venham a surgir no futuro.
E uma vez detectada a inércia ou omissão do Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente, cabe ao Conselho Tutelar comunicar o fato ao Ministério Público, que poderá tomar medidas administrativas e mesmo judiciais no sentido de compelir o órgão a cumprir sua missão constitucional básica, que é a deliberar políticas públicas para área da infância e da juventude e fiscalizar sua efetiva implementação pelo Poder Executivo (cf. art.227, §7º c/c art.204, inciso II, da Constituição Federal e art.88, inciso II, da Lei nº 8.069/90), podendo responsabilizar administrativa, civil e criminalmente os integrantes do órgão que contribuírem para tanto (cf. arts.5º, 201, incisos VI, VII e VIII, 208 e seguintes e 216, todos da Lei nº 8.069/90) .

5. Da necessidade de uma política pública voltada à prevenção e ao atendimento especializado de crianças e adolescentes vítimas de violência sexual:

Como visto acima, o Conselho Tutelar não pode limitar sua atuação ao puro e simples atendimento de casos individuais de crianças e adolescentes que já foram vítimas de violência sexual, com a pura e simples “aplicação de medidas” que estão fadadas ao fracasso, pela absoluta falta de estrutura do Poder Público, mas sim deve agir de forma preventiva, e com uma preocupação coletiva, visando a implementação de programas específicos de atendimento e serviços públicos especializados que permitam combater as causas do problema e para ele encontrar soluções efetivas e definitivas, tanto em proveito da criança ou adolescente em particular, quanto de sua família.
Para tanto, deve o Conselho Tutelar, usando de seus poderes/deveres e prerrogativas legais, dentre as quais se encontra a de “assessorar o Poder Executivo local na elaboração da proposta orçamentária para planos e programas de atendimento dos direitos da criança e do adolescente” (cf. art.136, inciso IX, da Lei n° 8.069/90), buscar junto ao Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente (e ao governo e órgãos públicos municipais, que o integram ), a elaboração e implementação de uma política pública específica, voltada à prevenção e ao atendimento especializado de crianças e adolescentes vítimas de violência sexual, e suas respectivas famílias.
Essa política pública deve se desdobrar em inúmeras ações, serviços e programas, envolvendo os mais variados setores da administração, órgãos e autoridades públicas, buscando a articulação com outros serviços e programas desenvolvidos, inclusive, por outros níveis de governo, a teor do disposto no art.86, da Lei n° 8.069/90.
A necessidade de elaboração e implementação de semelhante política pública pelos municípios, vale dizer, é conseqüência natural e inexorável do disposto no art.88, inciso I, da Lei n° 8.069/90 , segundo o qual a municipalização do atendimento se constitui na diretriz primeira da política de atendimento traçada pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, tendo por objetivo evitar que a criança ou adolescente que se encontre em uma das situações previstas no art.98, da Lei n° 8.069/90, tenha de ser “exportada” para a Capital do Estado ou para um grande centro, para que somente então receba o atendimento e a proteção integral que lhe é devida.
Sendo a violência sexual contra crianças e adolescentes uma triste realidade que se encontra presente, invariavelmente, em praticamente todos os municípios brasileiros, a definição de “estratégias” para sua prevenção e combate, de modo a reduzir a incidência de ocorrências e permitir a efetiva solução dos casos detectados, evitando sua repetição e minimizando suas conseqüências deletérias , é também dever de todos os municípios, a teor do contido nos arts.4°, caput e 5°, da Lei n° 8.069/90 e art.227, caput, da Constituição Federal , e o Conselho Tutelar, tendo por “atribuição primeira” a plena efetivação dos direitos infanto-juvenis (cf. art.131, da Lei nº 8.069/90), deve zelar para que o Poder Público local planeje e desenvolva ações, bem como implemente os serviços públicos correspondentes.
Dentre as iniciativas a serem tomadas, podemos citar desde a deflagração de campanhas de conscientização da população no sentido do encaminhamento de denúncias de suspeita ou confirmação de casos de violência contra crianças e adolescentes, orientação e capacitação dos profissionais de saúde e da rede de ensino, para identificação e notificação de ocorrências similares, em cumprimento, inclusive, ao disposto nos arts.13 e 56, inciso I, da Lei nº 8.069/90, até a criação de “casas-lares” especializadas no acolhimento de vítimas de violência, capazes de abrigar, se necessário, toda a família da criança ou adolescente vitimizado(a) . É também fundamental o desenvolvimento de programas de orientação e apoio às famílias dos vitimizados (cf. art.101, inciso IV e 129, incisos I e IV, da Lei nº 8.069/90), inclusive no plano jurídico (cf. art.87, incisos III e V, da Lei nº 8.069/90), de modo que saibam como lidar com a situação e possam colaborar com os órgãos que irão atuar na busca de sua solução efetiva e definitiva.
A implementação, em nível municipal, de uma política pública destinada ao atendimento desta demanda , irá exigir o aporte de recursos públicos provenientes do orçamento do município e, eventualmente, também oriundos de repasses de verbas efetuados pelos estados e pela União, que também precisam desenvolver e/ou apoiar, políticas e estratégias semelhantes .
As ações a serem desenvolvidas, porém, deverão ficar a cargo dos órgãos municipais encarregados da execução das políticas públicas ligadas direta ou indiretamente à área infanto-juvenil, como é o caso das secretarias ou departamentos municipais de educação, saúde, assistência social, cultura, esporte, lazer, trabalho e habitação (apenas para citar alguns dos setores que devem estar envolvidos), sem prejuízo de sua necessária articulação com órgãos estaduais e Federais com atuação nos mesmos setores (cf. art.86, da Lei n° 8.069/90), bem como com o Conselho Tutelar e demais integrantes do “Sistema de Garantias dos Direitos da Criança e do Adolescente”, que também irão se valer dos serviços e programas de atendimento correspondentes.
Cabe ao Conselho Tutelar, portanto, agir no momento certo tanto para alertar o Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente acerca da necessidade da elaboração de uma política pública municipal voltada à prevenção e atendimento especializado de crianças e adolescentes vítimas de violência sexual, e suas respectivas famílias, quanto para cobrar, junto a este órgão e ao governo local, a previsão dos recursos orçamentários que se fizerem necessários à sua efetiva implementação, com o planejamento e a inclusão, na dotação orçamentária dos departamentos e secretarias municipais encarregados de sua execução, dos recursos públicos correspondentes. Desnecessário lembrar que a participação do Conselho Tutelar no processo de elaboração da proposta orçamentária do município se constitui em sua atribuição elementar (cf. art.136, inciso IX, da Lei nº 8.069/90) e que a previsão dos recursos orçamentários necessários à execução das ações e serviços públicos respectivos estão amparadas e são norteadas pelos princípios constitucionais da proteção integral e da prioridade absoluta à criança e ao adolescente (cf. art.227, caput, da Constituição Federal), que por força do disposto no art.4°, par. único, alíneas “c” e “d”, da Lei n° 8.069/90, compreendem a “preferência na formulação e na execução das políticas sociais públicas” e a “destinação privilegiada de recursos públicos nas áreas relacionadas com a proteção à infância e à adolescência”.
E isto deve coincidir com o início do processo de discussão e elaboração, por parte do Executivo local, das diversas leis orçamentárias (Plano Orçamentário Plurianual , Lei de Diretrizes Orçamentárias e Lei Orçamentária Anual), o que geralmente ocorre já nos primeiros dias do ano e se estende até o seu final, com a votação e aprovação da lei respectiva pela Câmara Municipal. Ou seja, trata-se de um processo quase que permanente, e que deve ir ainda além, abrangendo o acompanhamento da própria execução orçamentária.
Com efeito, não basta que o Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente, provocado (e assessorado) pelo Conselho Tutelar, delibere no sentido da elaboração e implementação de uma política pública voltada à prevenção e ao atendimento especializado de crianças e adolescentes vítimas de violência sexual e suas respectivas famílias, e que orçamento público contemple os recursos necessários para tanto. É preciso estar atento para que a execução orçamentária também respeite ao aludido princípio da prioridade absoluta à criança e ao adolescente, de modo que os recursos sejam liberados e as ações e programas de atendimento correspondentes sejam efetivamente criados e mantidos.
É prática comum, infelizmente, relegar a execução de políticas públicas na área social para o segundo plano, e mesmo “contingenciar” recursos orçamentários a esta destinados. Isto não pode ocorrer em se tratando de políticas e programas de atendimento destinados a crianças e adolescentes que, como visto, na forma da lei e da Constituição Federal têm direito à preferência na execução das políticas públicas e à destinação privilegiada (ou seja, também preferencial) de recursos públicos provenientes do orçamento.
O Conselho Tutelar, portanto, não apenas deve participar do processo de elaboração da proposta orçamentária, mas também precisa acompanhar a execução do orçamento, certificando-se que esta privilegie as ações na área da infância e juventude que foram deliberadas pelo Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente, tal qual previsto no ordenamento jurídico vigente.
Em constatando que o Executivo local não está conferindo à área da criança e do adolescente a prioridade absoluta que lhe é devida, quando da execução do orçamento, o Conselho Tutelar deve acionar imediatamente o Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente e também o representante do Ministério Público local (este com fundamento no art.220, da Lei n° 8.069/90), cobrando, em ambos os casos, a tomada de medidas - administrativas e, se necessário, judiciais - para que os preceitos legais e constitucionais respectivos sejam efetivamente respeitados.
Mas nem mesmo assim a tarefa do Conselho Tutelar estará terminada, pois após implementadas as ações e programas de atendimento destinados à prevenção e ao atendimento especializado de crianças e adolescentes vítimas de violência sexual e suas respectivas famílias, o órgão deverá promover, em caráter permanente, seu monitoramento e fiscalização (cf. art.95, da Lei n° 8.069/90), certificando-se que o atendimento prestado é adequado à demanda existente e está sendo eficaz, apresentando bons resultados.
Uma vez detectadas falhas na política de atendimento, seja em razão da falta de articulação entre os órgãos e entidades públicas e privadas encarregados de sua execução, seja por irregularidades nos programas de atendimento ou nos serviços prestados, cabe ao Conselho Tutelar intervir, comunicando o fato, em caráter oficial, ao Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente e ao Ministério Público, ou mesmo deflagrando, por iniciativa própria, conforme o caso, procedimento para apuração de irregularidade em entidade de atendimento, nos moldes do previsto no art.191 e seguintes da Lei nº 8.069/90.
Desnecessário dizer que a simples comunicação a outros órgãos e mesmo a deflagração de procedimento judicial específico não exaure a atuação do Conselho Tutelar, que não pode sossegar enquanto a falha ou irregularidade não for corrigida.
Afinal, o compromisso do Conselho Tutelar não é com o “encaminhamento” do caso a terceiros e/ou com a pura e simples aplicação de medidas, mas sim com a efetiva solução do problema e, em última análise, com a proteção integral infanto-juvenil, seja no plano individual ou coletivo.
Para tanto, é fundamental que o Conselho Tutelar mantenha também com o Ministério Público e com a Justiça da Infância e da Juventude uma relação de proximidade e parceria, acompanhando os casos a estes encaminhados até sua completa solução, aplicando as medidas complementares que estiverem a seu cargo e informando eventuais mudanças na situação de fato que possam influir na decisão judicial a ser proferida .
E a já mencionada articulação entre o Conselho Tutelar e os demais integrantes do “Sistema de Garantias dos Direitos da Criança e do Adolescente”, como forma de proporcionar o atendimento mais célere, completo e eficaz possível dos casos de violência contra crianças e adolescentes, se constitui num dos pontos chave da política de atendimento a ser implementada.

6. Da necessidade da qualificação profissional do Conselho Tutelar e dos demais órgãos e autoridades que atuam com vítimas de violência:

O “atendimento” de crianças e adolescentes vítimas de violência sexual, em toda amplitude do termo, se constitui numa atividade complexa pois, de um lado, existe o que se convencionou chamar de “muro do silêncio”, erguido em torno da ocorrência, seja em decorrência da influência ou mesmo coação do abusador/vitimizador, seja em razão da resistência apresentada pela própria criança ou adolescente abusada/vitimizada em revelar o ocorrido, por medo, vergonha, trauma ou qualquer outro motivo.
A busca de informações sobre o ocorrido, em especial junto à própria criança ou adolescente vítima, é tarefa das mais delicadas, que exige um elevado grau de preparo do agente encarregado e, em muitos casos (especialmente quando se trata de criança de tenra idade), irá demandar a intervenção de profissionais habilitados, que através de técnicas especiais, deverão extrair da vítima a informação necessária de forma indireta, sem submetê-la a uma situação constrangedora ou fazê-la reviver o trauma sofrido .
A própria intervenção junto à família da vítima, não raro, encontra resistência, seja em razão da falta de interesse em levar o caso adiante por parte desta, a pretexto de evitar a exposição da criança ou adolescente a um constrangimento ainda maior ou mesmo em razão do envolvimento de parentes ou pessoas próximas, seja por temor de represálias por parte dos autores da violência ou outros fatores.
Não se trata de algo, portanto, que pode - ou deve - ser efetuado sem maiores cautelas, seja pelo Conselho Tutelar, seja por outros integrantes do “Sistema de Garantias dos Direitos da Criança e do Adolescente” que não disponham de semelhante habilitação específica, como é o caso de Magistrados, Promotores de Justiça e Delegados de Polícia , que terão de se valer do auxílio de tais profissionais (de preferência, aliás, de uma verdadeira equipe interprofissional, nos moldes do previsto pelos arts.150 e 151, da Lei n° 8.069/90), sempre que necessário.
Assim sendo, é fundamental que uma política pública voltada ao atendimento de crianças e adolescentes vítimas de violência sexual contemple a contratação de profissionais das áreas da pedagogia, psicologia e assistência social que possuam semelhante habilitação, assim como a devida qualificação daqueles que já atuam no município, que devem ser habilitados a prestar este tipo de atendimento especializado, sem prejuízo da indispensável formação técnica dos órgãos e autoridades integrantes do “Sistema de Garantias dos Direitos da Criança e do Adolescente” que com aqueles irão atuar.
Para que isto se materialize, necessário se faz, antes de mais nada, a compreensão de que a intervenção de profissionais que não estejam capacitados, além de prejuízos imediatos à própria vítima, que acabará sendo exposta a situações constrangedoras quando tiver de relatar o ocorrido ou ser submetida a exames médico-periciais, poderá comprometer sobremaneira a coleta de provas sobre a violência praticada (que não raro se limitam à palavra da própria vítima) acarretando, em última análise, na impunidade do abusador/vitimizador e assim servindo de estímulo à reincidência.
A contratação e/ou a qualificação funcional dos profissionais que atuam no combate à violência contra crianças e adolescentes e no atendimento das vítimas e suas famílias, logicamente, irá demandar a previsão de recursos orçamentários específicos, não apenas por parte dos municípios, mas também pelos estados, de modo que conselheiros tutelares, policiais civis e militares, médicos do Instituto Médico Legal (assim como outros médicos peritos), integrantes das equipes interprofissionais a serviço da Justiça da Infância e da Juventude e mesmo Promotores de Justiça e Magistrados, recebam a qualificação técnica necessária para desempenhar tão difícil e delicada tarefa.

7. Do atendimento de crianças e adolescentes vítimas de violência sexual propriamente dito:

Uma vez criadas as condições para o adequado atendimento dos casos de suspeita ou confirmação de violência sexual de crianças e adolescentes (o que como visto se dará através da elaboração e implementação de uma política pública específica, e todos os seus desdobramentos acima referidos), é necessário definir claramente o papel a ser desempenhado pelo Conselho Tutelar e pelos demais órgãos e autoridades com atuação direta ou indireta tanto na investigação da ocorrência propriamente dita quanto na aplicação de medidas de proteção à vítima e, eventualmente, à sua família.
É importante ter em mente que cada órgão ou autoridade detém uma atribuição/competência específica a ser desempenhada, não sendo admissível quer a pura e simples omissão, quer a invasão na esfera de atuação dos demais, sem prejuízo, é claro, da possibilidade (diria mesmo, necessidade), de que todos trabalhem de forma articulada e integrada, em regime de colaboração, na busca da melhor solução para o caso.
A propósito, em que pese o disposto nos arts.13 e 56, inciso I, da Lei n° 8.069/90, acima referidos (que determinam a obrigatoriedade de comunicação dos casos de “suspeita ou confirmação de maus-tratos” ao Conselho Tutelar), não se pode olvidar que o Conselho Tutelar não é um órgão policial e/ou de segurança pública , não lhe incumbindo, portanto, a “investigação criminal” acerca da efetiva ocorrência da infração penal respectiva e, muito menos, a decisão acerca da necessidade ou não, de propositura de medidas judiciais de qualquer natureza, seja no sentido da responsabilização penal do agente, seja para eventual suspensão ou destituição do poder familiar, tutela ou guarda de pais ou responsáveis que figurem como vitimizadores.
Em todos os casos, uma vez acionado nas hipóteses acima referidas, ou em qualquer situação em que há suspeita da prática de infração penal contra criança ou adolescente, o Conselho Tutelar, por força do disposto no art.136, inciso IV, da Lei n° 8.069/90, tem o dever de encaminhar a notícia do fato ao Ministério Público em caráter de urgência, e o Ministério Público, por sua vez, deverá acionar a polícia judiciária para que proceda a competente investigação policial que venha a apurar a efetiva ocorrência do fato, inclusive através da já mencionada intervenção de profissionais de outras áreas, para oitiva da criança ou adolescente vítima, nos moldes do acima referido.
Isto não significa, como já mencionado, que o Conselho Tutelar não possa intervir no caso, de modo a aplicar à criança/adolescente e à sua família, desde logo, as medidas de proteção que se fizerem necessárias , porém deverá agir em parceria com os órgãos de investigação policial e com a equipe técnica interprofissional que, obrigatoriamente, serão também acionados, devendo com eles articular ações e debater a melhor forma de agir.
Uma atuação precipitada e/ou isolada do Conselho Tutelar pode inviabilizar a futura coleta de provas quanto à infração penal de que a criança ou adolescente foi vítima, contribuindo desta forma para impunidade do agente, assim como a pura e simples intervenção policial, máxime se efetuada sem as cautelas e sem a assistência de uma equipe técnica interprofissional (e mesmo do Conselho Tutelar), como alhures mencionado, pode trazer prejuízos ainda mais graves àqueles que se pretende proteger.
O êxito do atendimento a ser prestado à criança ou adolescente vítima, portanto, depende de uma ação coordenada por parte de todos os órgãos e autoridades acima citadas, assim como de outros integrantes do aludido “Sistema de Garantias”, como é o caso da autoridade judiciária, à qual serão requeridas (em regra, pelo Ministério Público), as medidas judiciais que se fizerem necessárias, tanto no sentido da responsabilização penal do agente, quanto para fins de eventual afastamento do agressor da moradia comum (cf. art.130, da Lei n° 8.069/90) e/ou, a depender do caso, para suspensão ou destituição do poder familiar, tutela ou guarda (cf. art.129, incisos VIII, IX e X c/c arts.155 a 163 e 164, todos da Lei n° 8.069/90).
Desnecessário mencionar que as ações acima referidas devem ser desencadeadas com o máximo de celeridade possível, por força do principio da prioridade absoluta à criança e ao adolescente (que compreende a “precedência de atendimento nos serviços públicos ou de relevância pública” - cf. art.4°, par. único, alínea “b”, da Lei n° 8.069/90) , e no mais absoluto sigilo, de modo a preservar a imagem da criança ou adolescente vítima, colocando-a a salvo de qualquer situação vexatória ou constrangedora que poderia resultar da divulgação do fato (cf. arts.5°, 17 e 18, da Lei n° 8.069/90).
Evidente, no entanto, que o atendimento a ser prestado à criança ou adolescente vítima e à sua família não se restringe à apuração da efetiva ocorrência da violência sexual, sendo esta apenas uma das etapas a serem vencidas na busca da efetiva solução do problema respectivo.
Para tanto, é fundamental que sejam também apuradas, mais uma vez de preferência com o auxílio de uma equipe interprofissional habilitada, as causas determinantes da ocorrência, suas conseqüências para a criança ou adolescente (em especial sob o ponto de vista emocional), e as “estratégias” mais adequadas para evitar sua repetição e para neutralizar/minorar os potenciais traumas dela resultantes.
Embora, como anteriormente mencionado, seja de importância capital a existência de estruturas e programas de atendimento que indiquem, de antemão, quais as alternativas disponíveis, é preciso não perder de vista que cada caso tem suas particularidades, e que cada criança, adolescente e/ou família atendida, tem necessidades específicas a serem supridas, que devem ser consideradas juntamente com o contexto social e cultural onde vive, sem qualquer preconceito ou “padronização” preestabelecida .
Em outras palavras, as estruturas e programas de atendimento devem ser flexíveis, de modo a permitir uma resposta capaz de fazer frente à diversidade das situações concretas que irão surgir, e o Conselho Tutelar deve estar atento tanto no sentido de aplicar a(s) medida(s) de proteção mais adequada(s) ao caso em particular, individualmente considerado, quanto para se certificar que as providências tomadas e os encaminhamentos efetuados estão surtindo os efeitos positivos desejados, pois afinal, como acima já mencionado, o compromisso do Conselho Tutelar não é com a pura e simples aplicação de medidas, mas sim com a efetiva solução do problema e com a proteção integral da criança ou adolescente atendida.
Para tanto, deve fiscalizar, em caráter permanente, o adequado funcionamento dos programas de atendimento existentes (cf. art.95, da Lei n° 8.069/90), bem como acompanhar os casos para eles encaminhados, até sua efetiva e integral solução, promovendo, sempre que necessário, os “ajustes” correspondentes, seja através da substituição e/ou da aplicação de novas medidas (cf. art.99, da Lei n° 8.069/90), seja através da busca, junto ao Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente e órgãos públicos encarregados da execução das políticas por aquele traçadas, da melhoria das condições de atendimento, tanto no plano individual quanto coletivo (cf. arts.131 e 136, inciso IX, da Lei n° 8.069/90).
Tal orientação se aplica, em especial, aos casos nos quais a família da vítima apresenta resistência à intervenção do Conselho Tutelar e demais órgãos de defesa dos direitos da criança e do adolescente. Diante de tal situação, importante antes de mais nada apurar as causas da resistência apresentada, a partir do que será possível definir as estratégias para combatê-las, através da aplicação de medidas de orientação, apoio e promoção à família (cf. arts.101, inciso IV e 129, incisos I e IV, da Lei nº 8.069/90 ) ou, em situações extremas, a destituição guarda ou tutela, suspensão ou destituição do poder familiar (cf. art.129, incisos VIII, IX e X, da Lei nº 8.069/90) .
Há também casos nos quais as medidas de proteção aplicadas acabam sendo descumpridas ou não surtem os resultados desejados. Aqui, mais uma vez, se faz necessário apurar o motivo do insucesso da intervenção, que pode ser resultante de falhas no programa de atendimento , demandando a realização de um estudo criterioso, que aponte o melhor caminho a trilhar, que tanto pode ser a supracitada substituição da medida originalmente aplicada quanto a aplicação de medidas adicionais, que àquela sirvam de complemento.
É claro que, diante do descumprimento das medidas de proteção aplicadas, existe sempre a possibilidade da aplicação de uma advertência à família (cf. art.129, inciso VII, da Lei nº 8.069/90), o oferecimento de representação à Justiça da Infância e da Juventude em razão da prática de infração administrativa, com fundamento no art.249, da Lei nº 8.069/90 (cf. art.136, inciso III, alínea “b”, do mesmo Diploma Legal) ou mesmo, diante da gravidade (ou reiteração injustificada) da conduta e da comprovada necessidade da adoção de tão drástica medida, a supramencionada representação para fins de destituição guarda ou tutela, suspensão ou destituição do poder familiar. Necessário ter em mente, no entanto, que uma abordagem de cunho “punitivo” dificilmente resolverá a situação e poderá acarretar problemas adicionais não apenas aos pais ou responsável, mas à própria criança ou adolescente vítima.
Jamais podemos esquecer que cada família tem uma dinâmica de vida e características próprias, tendo uma resposta também diferenciada diante das intervenções realizadas. Se, como dito, os programas de atendimento devem ser flexíveis para atender estas especificidades, o Conselho Tutelar também deve levar em conta tal realidade, evitando a “padronização” do atendimento e à aplicação de medidas de forma meramente burocrática e impessoal, que pode levar a decisões equivocadas e/ou a situações conflituosas que redundarão no fracasso da intervenção realizada, tendo como maior prejudicadas as próprias vítimas da violência.
Uma política de atendimento consistente e adequada precisa levar em conta tais fatores, e desenvolver estratégias para superar as dificuldades e os obstáculos que surgirem, através da mencionada ação integrada e articulada de profissionais qualificados dos mais diversos setores, formando uma verdadeira “rede de proteção” capaz de encontrar uma solução efetiva e definitiva para o caso e também evitar, ou ao menos minimizar, possíveis traumas e conseqüências negativas às vítimas de violência.
Vale mencionar, por fim, que a falta de políticas públicas, estruturas e programas especificamente destinados ao atendimento de crianças e adolescentes vítimas de violência sexual logicamente não impede que o Conselho Tutelar atue desde logo, em parceria com os demais integrantes do “Sistema de Garantias” acima referido, diante dos casos em concreto que surgirem. Neste sentido, usando de seus poderes e prerrogativas institucionais, poderá requisitar, junto aos órgãos públicos encarregados da saúde, educação e assistência social, que seja prestado à criança/adolescente e sua respectiva família, o atendimento devido por intermédio de profissionais das respectivas áreas, naqueles lotados (cf. art.136, inciso III, alínea “a”, da Lei n° 8.069/90), com a mais absoluta prioridade (cf. art.4°, par. único, alínea “b”, do mesmo Diploma Legal), sem prejuízo do acionamento do Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente local, na busca de uma readequação dos programas existentes para o atendimento desta demanda específica (cf. art.259, par. único, da Lei n° 8.069/90) . Deverá ainda, paralelamente, peticionar ao Ministério Público (cf. art.220, da Lei n° 8.069/90), para que o órgão tome as medidas administrativas e/ou judiciais que se façam necessárias para que essa grave deficiência estrutural seja sanada da forma mais célere possível.
Em qualquer hipótese, é preciso erradicar do “Sistema”, de uma vez por todas, o amadorismo e a improvisação, que tantos prejuízos acarretam a crianças e adolescentes vítimas de violência sexual.

8. Conclusão:

A busca de soluções efetivas e definitivas para os casos de violência sexual contra crianças e adolescentes não é uma tarefa fácil, e esta é a razão pela qual o Conselho Tutelar, longe de agir de forma isolada e improvisada, numa postura submissa e conformista, face a realidade de descaso e omissão para com a área da infância e da juventude encontrada em boa parte dos municípios brasileiros, deve assumir uma posição de vanguarda da luta pela transformação dessa mesma realidade, atuando em conjunto com outros órgãos, autoridades e profissionais que integram o “Sistema de Garantias dos Direitos da Criança e do Adolescente”, no sentido da articulação de uma verdadeira “rede de proteção” dos direitos da criança e do adolescente, que não pode prescindir da elaboração e implementação de uma política pública específica, destinada ao atendimento de tão grave e complexa demanda.
Seu principal foco de atuação, como visto acima, deve ser junto ao Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente, que precisa ser chamado a intervir , quer no sentido da articulação da referida “rede de proteção”, quer na definição das referidas “estratégias” de atuação intersetorial e interdisciplinar, bem como das ações, serviços e programas de atendimento que devem ser implementados e/ou adequados, com vista à prevenção e ao atendimento eficiente e resolutivo dos problemas detectados, tanto no plano individual quanto coletivo.
Paralelamente, precisa participar do processo de conscientização e mobilização da sociedade em torno da matéria, zelando para que os profissionais que atuam nas escolas e nos órgãos de atenção à saúde estejam atentos aos sinais de vitimização que a criança ou adolescente apresenta e, diante da mera suspeita de sua ocorrência, efetuem as comunicações a que estão obrigados por força do disposto nos citados arts.13 e 56, inciso I c/c art.245, da Lei nº 8.069/90, que deverão ser repassadas de imediato ao Ministério Público (cf. art.136, inciso IV, da Lei nº 8.069/90) e à polícia judiciária para que sejam devidamente apurados, de preferência, como visto acima, com o auxílio de uma equipe interprofissional habilitada.
É preciso, enfim, compartilhar responsabilidades, e fazer com que cada um dos integrantes do “Sistema de Garantias dos Direitos da Criança e do Adolescente” exerça a contento suas atribuições e assim dê a sua parcela de contribuição para efetiva solução do problema, pois, afinal, a proteção integral infanto-juvenil, por força do disposto nos arts.4º, caput, 18 e 70, da Lei nº 8.069/90, e art.227, caput, da Constituição Federal, se constitui num dever de todos, e não apenas do Conselho Tutelar.
Somente assim estará o Conselho Tutelar exercendo, em sua plenitude, aquela que, sem dúvida, se constitui em sua “atribuição primeira”, contemplada pelo art.131, da Lei n° 8.069/90 acima transcrito, que é a de “...zelar pelo cumprimento dos direitos da criança e do adolescente...” definidos pela Lei n° 8.069/90 e proporcionar, concreta e verdadeiramente, a prometida proteção integral a esta tão sofrida, negligenciada e vitimizada parcela da população.
Fonte: Ministério Público do Paraná - CAOPCA

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